Fui ao cinema há pouco tempo assistir ao filme “Malévola” e, após a sessão, tive certeza de que meu próximo post seria inspirado no filme. Não se trata de uma sinopse, tampouco uma crítica. Pretendo levantar aspectos relevantes para reflexão que até mesmo quem não assistiu ao filme pode achar interessante e vir a assistir também: acredito que é uma experiência muito válida.
Em todos os contos infantis em suas versões originais, percebe-se a presença de um personagem “bonzinho” e, em contraposição, um personagem única e extremamente cruel. Esses são denominados pela literatura como personagens “planos”. Já nos (re)contos modernos, existem adaptações dessas histórias que, de forma fascinante, expõem as crianças ao lado humano dos personagens: os mesmos agora possuem grande densidade psicológica e aspectos de personalidade que a criança pode perceber como se constituíram ao longo da história. Esses novos personagens são definidos como “esféricos”, pois se pode identificar tanto o bem quanto o mal em suas ações e sentimentos. Na sessão do filme “Malévola”, que assisti com meu irmão de 7 anos, durante a cena em que a Malévola era uma criança ele perguntou: “Ué, essa é a Malévola? Ela não é malvada?”. E depois, quando ela se tornou adulta (que no filme ocorre repentinamente), ele perguntou: “Agora sim ela é malvada né?”.
Interessante essa tendência em classificar e separar o “bom” do “mau”. Eu não tiro o mérito desse aspecto dos contos de fada e, para justificar, conto a vocês o que foi defendido pelo autor Bruno Bettelheim, em seu livro “A psicanálise dos contos de fada”: de acordo com o psicólogo, os contos de fada são de extrema importância para a criança, pois as histórias falam ao ego que desabrocha e encorajam seu desenvolvimento, ao mesmo tempo em que aliviam pressões pré-conscientes e inconscientes. Isso ocorre da seguinte forma: no conto, os processos interiores da criança são exteriorizados no momento em que ela escuta a história e dá significado aos seus sentimentos através das ações e sentimentos dos personagens. Então, seus sentimentos se tornam compreensíveis por serem representados pelos diversos acontecimentos, tanto os bons quanto os malvados. Por isso é muito importante haver essa divisão nítida, para que a criança transfira todas as suas más emoções às personagens cruéis que, ao final da história, sempre são mortas ou desaparecem para sempre. Já o lado bom prevalece e é com ele que a criança se identifica, por fim. Todo ser humano cresce em busca de significados e a infância é a fase mais importante na constituição dos mesmos, pois há uma constante descoberta de emoções e uma grande gama processos psicológicos muitas vezes desconfortáveis para a criança (como o Complexo de Édipo, por exemplo). Transferir essas pulsões para os personagens promove um desenvolvimento saudável da psique.
Dando um tempo com a teoria, vamos voltar ao aspecto esférico dos personagens das histórias modernas: “Malévola” é um belo exemplo disso. A personagem aparece no clássico conto da Bela Adormecida como uma fada maligna que, ao ser negligenciada pelo rei, lança um feitiço em sua filha recém-nascida (Aurora). Mas o filme lançado recentemente mostra os reais motivos de Malévola ter lançado o feitiço e, curiosamente, depois se arrepende de ter o feito. É uma grande mudança de paradigma, que demonstra claramente que o mal não surge sozinho e sem razão: o mal surge a partir dos diversos outros males aos quais os seres humanos são acometidos. De forma muito profunda, o filme mostra porque Malévola age de forma tão cruel e como ela se redime e consegue superar todo o mal que partiu seu coração.
Muito fácil transpor todos esses significados às nossas vidas, não é mesmo? Quantas vezes julgamos nossos atos por acreditarmos tanto que temos de “ser” pessoas boas? Sim, temos de pensar no bem comum e também no nosso próprio bem, isso é aprendido socialmente. Mas deve haver uma tolerância com sentimentos, por piores que sejam em certos momentos. As pessoas vivem em busca de constituir uma identidade para que possam saber quem são, o que gostam de fazer, o que querem para o resto da vida... Sem levar em conta a essência efêmera que tem o ser humano e seus respectivos sentimentos. Nós, no fundo, não “somos” nada: assim como não existem pessoas totalmente boas e pessoas totalmente más, pessoas totalmente confiáveis ou pessoas totalmente irresponsáveis. Quando se trata dos outros, julgar é fácil, quando não se sabe o real motivo pelo qual as pessoas fazem o que fazem. É importante ter em mente que nada surge sem uma razão, uma origem. Essa origem pode ser familiar, pode ser traumática ou de um momento bom e marcante, enfim. Toda e qualquer ação humana tem uma raiz muito subjetiva que vem da história de cada um e acredite: pensar dessa forma pode melhorar muito a sua relação com o mundo.
Por fim, acho que falta compreender o que até os contos de fada já adaptaram em suas histórias: É preciso aceitar as emoções inerentes à natureza humana, mesmo que sejam contraditórias. Justamente! Devemos ter conhecimento da efemeridade das emoções e sentimentos, bem como de que esses vêm como uma carga muito subjetiva de cada um, e que cabe a nós compreender na medida do possível, ao invés de classificar o próximo de acordo com suas ações, ou até classificar a nós mesmos. Nem sempre é um bom dia pro seu colega de trabalho, pra sua família ou pros seus amigos. Nem sempre é um bom dia pra você! Às vezes o que você e os outros precisam é de uma boa dose de compreensão para que tudo venha à tona – como em um filme, mesmo – em que a personagem malvada é na verdade uma heroína que teve seu coração partido um dia.
Um comentário:
Puxa... Engraçado como temos que de fato estar em constante leitura, constante busca de aprendizado. Fiz o curso de Psicologia de Verão, com a palestrante australiana Marilyn Fleer, que trouxe a importância dos contos de fada no desenvolvimento da psicológico infantil. Foi fantástico. Mas, infelizmente, esse momento ficou esquecido em minha mente e agora reavivado por essa bela postagem. A crítica, ou melhor, o julgamento é uma característica muito marcante do ser humano. E este julgamento não traz à baila fatos relevantes para determinadas posturas e comportamentos. O outro lado da moeda a gente nunca quer ver... A não ser que seja a moeda do "Duas-Caras"... Parceira, Parabéns pela postagem!
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